O sofá laranja da dona Vésper

Um genro que eu não pedi a deus foi esse tal de Eriberto. Imagina um homem largo! Não só com corpo o traste ocupa o meu sofá e minha vida tem sido o sofá em que se espraia, feito um cheiro.
Chego a desacreditar: ele na quina do sofá e não dou conta de enxergar a tv, não sei explicar.
Paga pizza, traz uns mimos, é educado, até tira os sapatos na soleira, mas mesmo descalço cada pé do cretino tem quatro solas de tamanco, não é possível, uma em cima da outra, porque só ouço o eco, seco: o mundo sou eu, ele e o meu sofá.
É uma bosta o sofá? É, mas é laranja e meu. Adoro laranja, comprei porque era, que na terceira prestação já dava sinais de não durar até o fim do crediário, uma bosta de sofá.
Falei pra Ruthinha não pegar o turno da noite no mercado. Parece que eu previa! Além da lambisgoia agora acordar à uma da tarde, trouxe esse traste junto com o adicional noturno, é o segurança do tal mercado.
Acordo bem cedo que é para quando chegar a manhã a casa estar assim como pronta, apresentável. Pro sol achar limpas as coisas e nelas brincar de cor, luz e calor. Eis a tríade! Luz, cor e calor. Daí de tarde, o sol imita, fora o calor, a luz branca das lâmpadas frias e bate, estralando, na louça lavada, no chão varrido. Eita.
Não me vejo e de onde vejo o sol lamber, faço gosto e as meninas não me atrapalham; são mobília, parece feio dizer, mas são, sabe? Teve época que era upa todo dia, a primeira palavra, a primeira nota vermelha, o primeiro chupão no pescoço, upa todo dia, mas daí do nada estanca, mobília.
A única sombra é esse tal de Eriberto. Não deixa o sol chegar ao meu sofá laranja. Não deixa o sol carcomer na velocidade certa, devida e prevista meu sofá laranja.
Eu queria na verdade é morar à beira-mar. É o que sempre digo: praia é bom porque lá a gente dura mais que as coisas. A vida vai se esticando, porcamente, feito um doce, contra a ferrugem na bicicleta, contra a areia que entra na madeira do portão e lá dentro o segura de pé, esforçosa e contrariada.
O que são rugas quando o quintal são lesmas e as paredes, cupins e formigas? Pelancas contra tanto inseto feio? Não tem o mesmo peso sobre a gente que tem aqui.
Eu só queria este corredor, esta língua do sol contra o sofá, sozinha. As meninas de mobília, neto nem quero. O sol lambendo e a minha certeza do sofá continuar laranja no de cor da memória. A pele ardida do calor mudo. Já percebeu o silêncio do sol ardendo a pele? Ou será que, no silêncio, a gente sente mais o sol?
São coisas nas quais eu matutava antes do Eriberto. Agora é boa-tarde, dona Vésper, espero não estar incomodando, dona Vésper. Ah, vá catar coquinho.
Se eu não conhecesse Ruthinha, já tinha feito a louca, mas conheço a minha mais nova. A mais velha não garanto, sempre um mistério a Gorete. Me arrependo até hoje de ter dado esse nome pra coitada. Vésper é estranho, admito, mas depois pensei, Gorete? É confuso. Não é que nem as Veras que nascem com 50 anos e de óculos. Se o Eriberto não estivesse aqui, eu matutava em cima.
Agora, Ruthinha eu acertei que foi uma beleza! Ruth é nome de adulta, de mulher feita. E a delícia de quando o apelido pegou? Nunca senti tanto orgulho na vida. Morder as pregas da Thitinha, soprar as bainhas da Thitinha.
Sempre achei que o que matou o meu Caetano não foi as filhas crescerem, mas a alumbração que isso fez no cérebro dele. Homem é bicho que quando para esquece que tem patas. Nem pra fugir presta. O corpo é maior, eles acham que vão aguentar o tranco, daí ficam lá, até a chuva levar. Uma lástima.
De Ruthinha eu entendo, era o meu ponto, o poliedro que pisca e emite cacoetes me atrapalhou, mas não veio pra ficar porque conheço a minha mais nova: só eu esperar a viração, a equação se resolve.
Porque Ruthinha não é mobília qualquer, é daqueles móveis que a gente esbarra de vez e nunca e mesmo assim não quer mover. A Gorete está sempre lá, tem aquela cara de prisão de ventre e sempre teve e tem todo dia aquela cara, mas a Ruthinha ora está ora não está.
Mas quando está, ah quando está é a queda, não falei viração à toa.
Comprei um galão de tinta laranja pra tirar do sofá o atraso que o Eriberto causou ao minucioso trabalho do sol. Fiquei a manhã decorando na cabeça o estado geral do móvel e a tarde toda na loja escolhendo tal qual.
Pintei cada canto que destoava o descolorido, o que deu bastante área. Na tinta fresca, foi mais fácil ver o contorno e me deliciei com a sua figura não humana, por certo. Não eram as duas bandas de uma bunda nem a mossa de um cotovelo.
Eriberto, a sombra que as árvores fazem no chão. Sabe? Cheia de furinhos e os limites num quer não quer eterno de formar. Deve ser cisma minha, é pedir muito das gentes o que peço. O filho mais velho da Solange vai ser viado e já me chama de Greta Garbo.
Greta Garbo na feira escolhendo o que comer pela cor. Greta Garbo na feira pagando de olhos fechados o que cheira bem.
Greta Garbo planejando a morte do genro com um pincel em punho.
Movi a mesinha de centro e tirei o tapete. Melhor, quebrei o vidro da mesinha de centro, retorci em vão suas pernas de carnê e arremessei os restos com um urro. Melhor ainda, taquei o tapete pela janela direto pro quintal da vizinha, por sobre o muro. Um cachorro, de repente, feliz.
E me sentei feito gueixa diante do sofá. Num susto, me descobri sozinha. Me lembrei que era uma tarde de sábado e o susto tomou ares de milagre. Me acalmei. Fechei os olhos e não ouvi Gorete, aquele poço com fama de agourento.
Ouvi mais e soube Ruthinha chegando com Eriberto. Não entraram de imediato.
Mirei o sofá. A língua do sol se enfiou voraz na mais fresca pincelada e ardeu chama iluminando pela última vez a tentativa de delinear meu ex-genro. Laranja contra laranja até de tudo laranja algo ser além da cor.
À porta, negando porta, Ruth terminava com Eriberto.
A única certeza que tenho, quero morrer vendo areia e mar, na praia, onde a gente dura mais que as coisas, onde a vida não racha em dois quem a gente ama porque a gente fica ocupada suando na matuta.
Ruth entrou e me encarou, chorando mais pelo fim do namoro do que pela mãe, que encarava com o olhar que reservamos aos loucos e eu ali com as mãos sujas de joelho e tinta, louvando um sofá laranja e ela disse, tenho certeza das palavras:


— Por isso que só a Gorete te suporta.

O espanto foi menor do que ante o milagre do sábado solitária, pena tão breve.

— Quando a gente morre na praia nunca deixa de ver beleza. O barulho, chato, do mar não deixa. A gente acha que morreu, mas mesmo morta vê beleza. A onda não erra. Quebra e, upa, a gente vê.




, lrp
São Paulo, sp, praça júlio mesquita
27 de Janeiro de 2018, dos 5 minutos às 2h28
de 14 a 27 de junho às 15h09 de 2018

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

10