Cena de ônibus

Hm, pastel de canela. Não, não. Uma mulher no banco da frente está comendo um pastel e a mulher sentada ao meu lado mastiga uma bala de canela de cheiro bem forte, como toda bala de canela deve ter e ser. Meu desejo fecha o triângulo, entendem? Há uma linha tão reta entre as duas mulheres que vejo as três, a reta e as tais duas mulheres, meu triângulo recendendo a pastel de canela. Não, não é isso. Meu desejo é que é o tal triângulo, ambos igualmente abstratos, pois a reta eu refaço quantas vezes eu quiser de uma mulher a outra; aliás, do que será o pastel? Minha curiosidade me comove neste momento que nem quando me contorço para espiar o que alguém tecla sem muita perícia no celular ou para descobrir o título de um livro que outra pessoa lê no metrô. Juro que tal hábito já me rendeu frutos divertidíssimos: um mano informando, carinhoso entre gírias, minha imaginação supondo o destinatário masculino outro mano que a noite passada tinha sido ótima e a mulher de tailleur lendo "O poder da esposa que ora". Não, não era nada disso o que eu queria falar: minha curiosidade me comoveu naquele momento porque era uma débil de tentativa minha de trazer mais elementos à baila além dos triângulos sexuais, é claro. Temo que pastel de canela não exista. Isso me lembra de quando eu criança misturei coca com leite: se ambos eram bons separados, imagina juntos! Se bem me lembro, o resultado é uma coalhada escura, algo realmente divertido de se ver. Não de beber, eu bebi. Uma vez meu pai me pediu para pôr mais vinho branco no copo dele e eu verti o que havia no copo na pia; mas isso foi antes, tenho certeza. De repente, comer no ônibus me parece uma coisa absurda. Meu tio morto alcoólatra ao volante e eu ao seu lado, no banco da frente. Tudo parado. Minha irmã no banco de trás e o vidro fumé do meu lado aberto mais de meio palmo. Ali, a terceira mulher, chupando uma casquinha. De repente ele fala que comer na rua é falta de educação com os mendigos. Pirâmide.

Comentários

Sabe aquilo que falei sobre acertos geniais e erros miseráveis?! Pois este texto se encaixa na primeira categoria!!! Esfinge!!!
vina apsara disse…
falta de educação com os mendigos é ótima. grande final, surica! mesmo com esse espaçamento difícil, é gostoso de ler.
Prosa é bem melhor que verso, eu sempre digo! Extremamente legal.

Falta de educação com os mendigos é não oferecer, né? Haha.
Marcelo Pierotti disse…
Rapaz, nunca vi você se aventurando por esse tipo de prosa. Fluiu bem, eu gostei, labiríntico e tal.

Se torci o nariz, acho que foi só pra uma passagenzinha de duas ou três palavras. Mas há de ser por motivos pessoais demais para interessarem.

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