Tradução amadora e comentário de fã

Um coelho enquanto rei dos fantasmas é dos poemas que mais mexem comigo. Talvez por tão lindamente não cair na distinção simplista entre poemas de apelo imagético e os de apelo prosaico. Antíteses vão se paradoxando enquanto o si cresce como única opção na meta de descrever o todo. O binômio objeto-sujeito não é o bastante para este eu-lírico que requer tanto empenho de seus leitores, ou uma fruição quase demente, pois nesta fusão entre ser e o visto ele tem a audácia de anular a função emissora, não há indícios de quem fala, e usar no lugar um procedimento muito mais complexo: fundir os objetos de indagação com aquilo que nos possibilita percebê-los: luz no pelo do coelho, sua sombra na lua. O duplo sentido da palavra apreensão.

Wallace Stevens é o discípulo mais cruel de Alberto Caeiro, digamos assim. Indagações irônicas tecidas em divagações que se amarram. Se você juntar o primeiro com o último verso deste belo poema, vai entender o que estou tentando dizer. Lido do começo ao fim, o poema parece filosofal e perscrutante, como se tentasse captar o inefável da experiência humana. Porém, já em posse de seu arremate, o poema soa retórico e engenhoso, um mero exercício de como descrever algo comum do jeito mais excêntrico possível. E ele é as duas coisas. As três.

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Um coelho enquanto rei dos fantasmas, Wallece Stevens. Trad. de Leandro Rafael Perez


A dificuldade que é pensar quando o dia finda,
quando a sombra sem forma cobre o sol
e nada fica que não seja luz sobre teu pelo 

Havia um gato a lamber seu leite o dia todo,
gato gordo, língua vermelha, mente verde, leite branco
e agosto o mais tranquilo dos meses.

Ser, na grama, na mais tranquila das horas,
sem aquele monumento ao gato,
o gato esquecido na lua,

E sentir que a luz é uma luz-coelho,
na qual tudo foi feito pra você
e nada requer explicações,

Daí não há o que se pensar. Vem de si,
e corre a oeste o leste e aquele abaixo,
não importa. A grama está cheia

E cheia de você mesmo. As árvores ao redor são pra você,
toda a amplidão da noite foi feita pra você,
um si mesmo que toca todos os limites,

Você se torna um si mesmo que preenche os quatro cantos da noite.
O gato vermelho do nada se esconde na luz-pelo
e aí vai você corcunda pro alto, corcunda pra cima,

Você cada vez mais corcunda pro alto, preto que nem uma pedra 
você senta sua cabeça como um arranhão no espaço
e o pequeno gato verde é um inseto na grama.

§

O poema original.

Comentários

vina apsara disse…
gostei muito! e conseguir ver direitinho o que você apontou...
Antônio LaCarne disse…
incrível esse poema, me identifiquei bastante! não conhecia o autor e já vou pesquisar mais sobre.

grande abraço :)

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